Há, pelo menos, três fatores que tornam os dias de junho marcantes para mim. É mês do Orgulho LGBTQ+, momento em que celebramos os fragmentos de normalidade que conquistamos ano após ano; é mês do Orgulho Autista, assunto sobre o qual comentarei mais em outra ocasião; é mês, por fim, das festas juninas, que, para nós, professores, marcam o final de um semestre letivo e a chegada das férias. Junho é festa.
Em relação ao primeiro fator, acredito que eu seja um gay puerilmente clichê. Por mais que os interesses do mercado ditem a quantidade de bandeiras arco-íris que nos bombardearão nas ruas, na televisão e na internet, confesso que me emociono cada vez que vejo as seis cores reunidas por aí, especialmente quando vêm com mensagens de amor à diversidade. Esta é uma das arapucas do sistema às quais alço voo sem grandes remorsos; o peso da existência já nos prende ao chão em absolutamente todos os dias, portanto permito-me este pequeno luxo de consciente inconsciência.
É preciso comemorar, afinal de contas. Foi somente há 12 anos, a título de exemplo, que passamos a poder nos casar. Eu tinha 18 anos, era calouro na faculdade, e lembro-me do sentimento de indescritível alegria que me preencheu quando soube que o “casamento gay” havia sido regulamentado no Brasil. Eu só conheceria meu primeiro namorado dali a dois anos; a expectativa real de me casar, então, ainda era remota. Mesmo assim, pela primeira vez, deparei-me com a possibilidade de um futuro minimamente normal. Pela primeira vez, pude cultivar a esperança de acessar o mapa que, desde sempre, parecia acessível a todos à minha volta. Eu poderia pensar em estudar, trabalhar, namorar, comprar um apartamento, casar.
Mais tarde, é claro, a vida provar-se-ia imprevisível, e os mapas preestabelecidos tornar-se-iam obsoletos. No entanto, o essencial para mim foi o fato de que, a partir de 2013, foi-me permitido sonhar com a normalidade da vida.
No ano seguinte, vibrei com o primeiro beijo gay que vi na televisão aberta. Félix, o vilão da novela “Amor à vida”, encontrou seu controverso final feliz com Niko, o Carneirinho. Minha avó estava internada, e eu estava passando a noite no hospital acompanhando-a, quando vi os dois personagens beijarem-se logo antes de Niko deixar a casa para trabalhar. Saí do quarto e, aos prantos, liguei para uma amiga, sem encontrar palavras certeiras para descrever o que motivava minhas lágrimas. Um casal de homens despedindo-se com um beijo antes de seguirem suas rotinas do cotidiano: a normalidade parecia cada vez menos intangível.
Por isso, não consigo evitar a emoção que me inunda quando penso sobre o Orgulho LGBTQ+. Inclusive, aproveitando o ensejo piegas, vale mencionar que se pode utilizar todo o medo e a frustração e a dor de pertencer a um grupo marginalizado para potencializar o alívio que acompanha absolutamente qualquer pequeno avanço do movimento. Isto é, acima de tudo, uma ferramenta útil para sobreviver à dor que nos é infligida diariamente. Portanto reforço: este primeiro fator junino realmente me comove.
Conforme já dito, explorarei o segundo fator em um outro momento. O terceiro, por outro lado, cabe ainda neste mesmo encadeamento de ideias.
Junho é preparativo para as férias. Depois de cinco meses de convívio intenso, é evidente que precisamos de repouso. Lidar com a subjetividade de múltiplas pessoas simultaneamente — enquanto se tenta ensinar sobre análise sintática ou parnasianismo —, afinal, é tarefa que certamente desgasta as relações pessoais que estabelecemos com os estudantes.
Sinto-me cansado. Neste mês, já não tenho mais energia para continuar ponderando a respeito dos motivos que levam os alunos a atitudes desrespeitosas uns com os outros, ou, ainda, comigo mesmo. Mantenho a consciência de que preciso compreender antes de agir, mas começa a faltar-me disposição para não ser reativo.
A situação seria diferente se houvesse a colaboração dos responsáveis. No entanto, é perceptível o fato de que, frequentemente, somos encarados como inimigos pelas famílias dos educandos, e nossas medidas pedagógicas, comumente, confundem-se com atitudes punitivas motivadas por perseguição contra os estudantes.
(Falando sobre dificuldades gerais envolvidas na educação, novamente, percebo que abordo um assunto que renderá uma nova crônica, visto que não será viável explorá-lo de maneira devida neste espaço).
Em suma, em junho, a bandeira arco-íris comove-me, ao passo que as bandeirinhas coloridas aliviam-me. E é justamente nestas bandeirinhas coloridas que trabalho em minha última semana antes das férias: participo de sua confecção, pois elas decorarão a escola para a festa junina, nosso último dia letivo do semestre.
Por fim, embora este seja um evento anual, dessa vez, estou levemente apreensivo. Marina, a antiga professora de história, deixou a escola há poucas semanas. Eu costumava dançar o quadrilhão que encerra a festa com ela; agora, porém, estou sem par. Neste sentido, a escolha mais óbvia, considerando que o quadrilhão de encerramento é aberto a todos os presentes na festa, seria que eu dançasse com Luan, meu namorado.
Os alunos do Ensino Médio, curiosos, perguntam-me animadamente se, sem Marina, dançarei com ele. Quando, então, vejo em seus olhos a expressão de genuína confusão frente à minha resposta indecisa, sou forçado a encarar mais uma vez uma verdade inconveniente: nosso acesso a experiências tão simples da experiência humana — tais como dançar uma quadrilha com o namorado — é incessantemente negado.
Meus alunos não podem compreender que, com a naturalidade de quem forjou sua subjetividade em vigilância, preocupo-me com o que os pais podem fazer caso me vejam dançando com Luan. A questão, veja-bem, não é me preocupar com suas reações, uma vez que sei que haverá olhares de, para dizer o mínimo, desaprovação. Imediatamente, ecoam em minha mente as palavras que fui forçado a ouvir durante uma certa reunião de pais: “você constrange a minha filha, e sabe muito bem o porquê”. Imediatamente, evoca-se a memória das mensagens odiosas que presenciei uma aluna enviando contra um aluno gay. “Tomara que você morra de AIDS, porque este é o destino de vocês”.
Embora, em situações como essas, a escola tenha tomado nosso partido, tal posicionamento não foi feito de maneira incisiva. Não me sinto seguro hoje, e não sei se me sentirei algum dia.
Eu gostaria de ter a ingenuidade que vê com confusão minha hesitação frente à ideia de dançar uma quadrilha com Luan; quando se pertence à comunidade LGBTQ+, entretanto, este sentimento nunca pode ter sido cultivado. Não importa que o “casamento gay” seja legalizado, nem que homens estejam se beijando nas telenovelas; a questão é que, sabemos, nunca teremos acesso a uma estrada isenta de milhares de cacos de vidro invisíveis a olhos normativos.
Por isso, permito-me sorrir quando vejo o mercado aproveitar-se de nossas pautas. É junho, e, entre bandeiras arco-íris e bandeirinhas coloridas, aproximo-me das férias. Metade do ano passou; precisamos descansar.
Pois é; ainda bem, as férias estão aí!
Muito obrigado pelo comentário, Tati!
O cansaço por aqui é tanto que só posso concordar com "Metade do ano passou; precisamos descansar".
Mas também não poderia deixar de comentar, mais uma vez, o quanto é uma delícia ler o que você escreve e poder me sentir mais perto de ti por meio das suas palavras. Obrigada por esse presente mesmo no meio do caos!